É inerente inferir que, à medida que a população mundial cresce, a geração de resíduos oriundos das atividades cotidianas também aumente em termos quantitativos. Entre 2010 e 2019, a geração de RSU no Brasil registrou considerável incremento, passando de 67 milhões para 79 milhões de toneladas por ano. Por sua vez, a geração per capita aumentou de 348 kg/ ano para 379 kg/ano, segundo a ABRELPE no panorama sobre 2020.

Quando as atenções são voltadas aos resíduos oriundos de esgoto, tem-se o aumento gradual da coleta. De acordo com o IBGE, a cobertura do esgotamento sanitário por rede coletora passou de 55,2% (3.069 municípios) em 2008 para 60,3% (3.359) em 2017. Isso pressupõe que as estações de tratamento (ETEs) receberão cada vez mais esse tipo de substrato.

Entretanto, se, por um lado, o cenário supracitado revela o desafio de promover o gerenciamento adequado de uma demanda de resíduos que só cresce, por outro, encontra-se a oportunidade do incremento de novas tecnologias e metodologias no manejo sustentável destes. Um dos processos vislumbrados para auxiliar tal problemática não é tão novo assim. No ensejo deste contexto é válido, portanto, parafrasear o filósofo e educador contemporâneo Mário Sérgio Cortella, o qual diz que “inovar não é sempre criar o inédito. Muitas vezes, inovar é dar vitalidade ao antigo”.

A verdade é que a biodigestão é tão antiga quanto a Revolução Industrial. No século XIX, Ulysse Graynon, um aluno do famoso cientista Louis Pasteur, conseguiu obter 100 litros de gás por m³ de matéria, ao realizar a fermentação anaeróbia de uma mistura de estrume e água, a 35ºC. Nas décadas de 50 e 60, Índia e China desenvolveram seus próprios modelos de biodigestor aplicado a dejetos humanos e começaram a utilizar mais intensamente o processo de biodigestão como fonte de energia.

O processo apresenta uma complexidade bioquímica estarrecedora. Se neste artigo entrássemos e explorássemos todos os parâmetros que o envolvem ocuparíamos muitas linhas para abrigar todas as informações. Paradoxalmente, estruturas simples e robustas podem se transformar em um reator anaeróbio, gerando biogás com dados surpreendentes em termos qualitativos e quantitativos. Você sabia que na Marca Ambiental, por exemplo, há um reator onde se estuda o processo de biodigestão aplicado aos resíduos que a CTR recebe? 

O processo de biodigestão, em suma, é um conjunto de reações promovidas por microrganismos diversos, que ocorrem em meio anaeróbico e possui, como substancial “ingrediente”, a matéria orgânica. Este fato se encaixa perfeitamente na problemática apresentada nos trechos acima, uma vez que os principais dejetos humanos gerados possuem concentrações consideráveis de matéria orgânica.

Os produtos resultantes dessa anaerobiose são o biogás, composto por metano e dióxido de carbono, e o digestato, sendo que este pode ser utilizado como biofertilizante. O índice mais importante na análise do biogás, em termos qualitativos, é o teor metano, uma vez que esse é inflamável e apresenta elevado poder calorífico.

A utilização do biogás é variada, podendo ser direcionada para a geração de eletricidade, calor, vapor, utilização como gás natural para injeção na rede ou uso como combustível veicular, gás para uso industrial na produção de químicos e outros.

O continente europeu já emprega atualmente o processo em sua cadeia de gerenciamento de resíduos. A utilização deste para tratamento de resíduos orgânicos pode ser considerada como a maior evolução europeia na gestão de resíduos durante as duas últimas décadas, marcadas pela expansão da tecnologia para a valorização da fração orgânica do resíduo sólido urbano (FORSU), particularmente nos últimos 10 anos.

No Brasil a biodigestão não é comum no tratamento de resíduos advindos do ser humano, mas é pioneira no ramo da suinocultura. A Associação Brasileira de Biogás (Abiogás) calculou que os rejeitos dos suínos podem gerar 2,7 bilhões de m³/ano de biometano, combustível que pode ser usado em frotas veiculares. Esse volume substituiria quase 2,5 bilhões de litros de diesel, reduzindo em 96% a emissão de gases de efeito estufa. Em outra frente, esses resíduos seriam suficientes para gerar 9.690,64 GWh de energia elétrica ao ano (ou 26,55 GWh por dia), o que abasteceria cerca de 5 milhões de casas mensalmente.

É importante estar ciente de que implementar a biodigestão no gerenciamento de resíduos resulta em:

  • Estar alinhado com a política nacional de resíduos sólidos (PNRS);
  • Ser agente mitigador da emissão de gases de efeito estufa (GEE);
  • Reduzir a quantidade de carbono equivalente emitida, podendo gerar Créditos Carbono;
  • Estar alicerçado sobre o tripé conceitual do desenvolvimento sustentável;
  • Diminuir os índices de poluição local melhorando a qualidade do ar e, consequentemente, reduzindo problemas na saúde pública;
  • Possuir um balanceamento energético positivo uma vez que o biogás gerado é um biocombustível;
  • Gerar renda a partir de dois produtos resultantes da biodigestão: o biogás e o biofertilizante.

 

Biodigestão no gerenciamento de resíduos no Brasil

Toda a narrativa proposta se resume a uma indagação pertinente: se a biodigestão transforma resíduos orgânicos em um combustível com alto valor energético e em um biofertilizante eficaz, por que ela não é uma realidade consolidada no setor de gerenciamento de resíduos humanos no país? 

A resposta faz parte de uma equação multifatorial, e permeia campos que vão desde a consolidação de políticas públicas e a regulamentação dos mercados associados à geração de energia até a viabilidade técnica da separação da fração orgânica dos resíduos sólidos urbanos, por exemplo. Vale destacar que a viabilidade de um projeto é circunstancial!

A maturidade atribuída ao mercado europeu, por exemplo, se baseia na existência de uma cadeia produtiva voltada ao setor, com fornecedores de tecnologias e suprimentos adequados aos diferentes tipos de resíduos e efluentes. Soma-se ainda a existência de inúmeras plantas em operação além da existência de instituições de fomento à capacitação e organização do setor, como o Centro de Pesquisa e Educação em Gestão de Resíduos- Center for Research, Education and Demonstration in Waste Management (CReED) e a Associação Europeia de Biogás – European Biogas Association (EBA).

Há a perspectiva, diante disso, de que, da mesma forma que ocorreu na Europa e que ocorre no setor da suinocultura no Brasil, o processo ocupe cada vez mais o escopo central da disposição final de resíduos e se torne uma das principais formas de tratamento devido ao balanço energético positivo.

Por conseguinte, há um longo caminho a ser percorrido! Enquanto isso, a Marca Ambiental, engajada em ser a melhor e mais completa Central de Tratamento de Resíduos do Brasil até 2023, segue buscando as melhores alternativas para cumprir seu papel social: promover a destinação final dos resíduos prezando pelo desenvolvimento sustentável.